sábado, 23 de maio de 2009

O menino, a olivetti e a amiga



Escrevo minha primeira carta desde que você partiu para o além mar. Resolvi acordar a velha máquina elétrica de escrever do padre José. Não sei bem bulir nela. Recordo dos meus nove anos quando olhava meu pai datilografar os inquéritos e outros procedimentos de delegado especial do interior cearense. Ele usava os dois dedos indicadores, mas tinha boa agilidade. Faz assim até hoje em seus bem vividos oitenta e quatro anos. Claro que era proibido da gente brincar na olivetti, mas menino é menino. Assim aprendi a colocar o papel e descobri muitas coisas do funcionamento da máquina, entre carões e puxavancos de orelhas.

No segundo grau tive aula de mecanografia em uma escola pública. Muitos alunos e algumas máquinas disponíveis. Recusei-me a aprender a utilizar todos os dedos e o professor pouco estava interessado em ensinar. Não sei como fui aprovado. Com a chegada dos computadores abandonaram de uma vez a máquina de datilografar.

A barragem sangra. Toda hora um monte de gente olhando. Ficam horas. Muitos comentários das sangrias anteriores, de quando transbordou por cima da pista. O dia de hoje é de sol depois de uns dias de chuva e chuvisco. Bonito! Roupas de todas as cores estendidas em varais de muitos quintais. Gente satisfeita perambulando pela rua. Fiz uma saidinha para comprar envelopes e sacar dinheiro para a viagem de amanhã. Hoje são 22 de abril, data oficial do processo de invasão dos territórios indígenas. Não escutei nenhum comentário a respeito.

Ei, quando se escreve em máquina de escrever é preciso colocar duas folhas de papel. A debaixo serve como forro para proteger o rolo preto. Assim ensinava meu pai quando a gente, já adolescente, podia utilizar a máquina dele.

Como vão os estudos? E a lida com a saudade? Penso que os piores tempos já foram enfrentados. Conte uma, duas, três descobertas!

Se essa máquina fosse manual eu saberia ser um pouco mais criativo na formatação desta carta, se se pode chamar estas mal traçadas linhas de carta. As cores das letras podem mudar, vejo agora. Vou fuçar a bichinha. Certamente tem bons recursos, talvez mais vantajosos que a manual. Ei! Descobri como se faz para romper com a trava do espaçamento.

Você vai escrever também uma carta? Não é preciso. E-mail é mais rápido. Não escrevo nesta velha máquina, brinco com ela. Estou brincando, recordando meus tempos de menino que nunca acabaram.

Quando esta carta chegar aí já se passaram vários dias. Era assim décadas passadas; e séculos antes, meses. Tudo muda e nada muda. Gosto desta lógica sem lógica, desta lei sem lei. O povo budista vive com essas arrumações aqui tidas como paradoxo. Rejeito o conceito de paradoxo, mas não saberia qual para explicar o que não se pode explicar.
Vamos almoçar?

Alexandre Fonseca

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