quarta-feira, 20 de maio de 2009

O povo indígena Anacé e o complexo industrial e portuário do Pecém


O Estado tem sido o principal inimigo dos povos indígenas no Brasil. Na história do povo Anacé não tem sido diferente. No século XVII o Estado invade seus territórios para facilitar a entrada dos empreendimentos coloniais. Nos últimos quinze anos o pesadelo da intervenção do Estado reaparece, reeditando a mesma lógica colonialista: remover o povo para que os empreendimentos privados se instalem em seus territórios.

História de luta e resistência.

O povo Anacé aparece na literatura desde o século XVII. Padre Antonio Viera cita este povo em sua Relação da missão da serra de Ibiapaba. O historiador Carlos Studart Filho, em sua obra Notas históricas sobre indígenas cearenses atesta que os Anacé moram junto à costa, eram guerreiros e indispostos a submeter-se ao novo reordenamento imposto pela Coroa portuguesa. Em 1666 o capitão mor Mello Gusmão ordena que se faça guerra “levando tudo a ferro e fogo e matasse todos os varões em estado de pegar em armas”. Em 1694 Fernão Carrilho sitiou parte dos Anacé a oito léguas ao Norte da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, onde permanecem até hoje. O historiador Capistrano de Abreu em sua obra Capítulos de história colonial & caminhos antigos do Brasil registra que em 1749 foi redigida a Informação geral de Pernambuco onde atesta que a aldeia Anacé era administrada pelos jesuítas. Pedro Theberge, também historiador, confirma este dado e sua obra Esboço histórico sobre a província do Ceará.

A enciclopédia dos municípios brasileiros, editada pelo IBGE em 1959, afirma que o nome do município São Gonçalo do Amarante “foi mudado para Anacetaba (...) por força do decreto lei Nº 1.114, de 30 de dezembro de 1943. Anacetaba significa aldeia dos Anacés, por terem aí habitado índios dessa tribo”.

O Sr. Raimundo Joaquim Anacé afirmou em 2004, quando na ocasião tinha 80 anos que “nasci aqui no Cambeba. Nunca sai daqui. Minha mãe e minha vó também” (depoimento recolhido no dia 02/11/04). Sr. Joaquim Pereira Barros, Quincas Pereira, 84 anos, assegura que o cemitério do Cambeba é indígena. Ele relata em cordel:
“Um dia morreu um chefe / De uma febre tremenda / Reuniu-se as duas tribos / Numa grande choradeira / Enterraram o velho índio / Embaixo de uma pitombeira
Cercaram aquela cova / Com uma cerca de madeira / E com muita devoção / As velhas índias rezadeiras / rezavam por seu defunto / com saudade verdadeira.
O Sr. José Carneiro / era meu tetravô / aumentou o cemitério / crescendo para três lados / com cerca de pau a pique / foi bem conservado / neste mesmo cemitério / este homem foi enterrado”.
Estas frases que escrevi / São histórias verdadeiras / Narradas pelos Caetanos / e pela família Pereira / o Raposal do Coqueiro / E o Adão da Pitombeira”.

Nova investida colonialista do Estado

Os Anacé viviam em seu território tradicional sem maiores problemas até o dia em que o Governo do Estado do Ceará resolve escolher sua terra para assentar um grande negócio.
No dia 05 de setembro de 1995 o Governo do Estado anuncia o início das obras de um empreendimento industrial e portuário no território Anacé. Três séculos antes expulsavam e matavam com a força militar, de mercenários ou capangas. Hoje com decreto de desapropriação ilegal, mas de resultados tão nefastos como antes. Cerca de cem famílias Anacé já foram obrigadas a deixar seu território tradicional. O Estado criou três assentamentos, antes denominavam de aldeamentos. Aos olhos do Estado cego de ganância, tudo vira mercadoria.
É macabro o preço que o Estado avaliou e pagou de ‘indenização’ das árvores: carnaubeira: R$ 0,30, mangueira: R$ 15,00, coqueiro: R$ 30,00 e cajueiro: R$ 30,00.
Certamente os critérios utilizados na avaliação destas indenizações não consideram nem ao menos o valor de mercado dos produtos oferecidos por estas árvores. A carnaubeira fornece a palha para cobrir casas, fazer chapéu, surrão, bolsa, esteira, corda, saia; a bagana, excelente adubo natural; cera, frutos, madeira para construção de casas. Trinta centavos! Tenham paciência! Um chapéu de palha de carnaúba custa R$ 5,00. A carnaúba tem valor inestimável, foi instituída árvore símbolo do Ceará (decreto nº 27.413 de 30/03/04). E o cajueiro? Um bom cajueiro produz em sua safra cerca de 80 kg de castanhas. Com esse valor de R$ 30, 00 não se consegue comprar nem 5 kg de castanhas.
O Estado desconsidera a presença dos Anacé que passam a ser visto como obstáculos que precisam ser removidos, assim declarou, dias atrás, o Governador Cid Gomes na TV Diário, repetindo o que o presidente Lula falou no ano passado. Não apenas os índios são visto como obstáculos, mas também a legislação ambiental. Neste caso, o Governador chamou de burocracia que atrasa o cronograma das obras. O Sr. Antonio Balhmann, presidente da Agência de Desenvolvimento do Ceará – Adece – que esteve reunido com negociantes da empresa Cargo Ventores, dos EEUU, declarou no jornal Diário do Nordeste (10/02/09) que “eles estavam querendo começar até o final deste ano, mas tem toda uma burocracia a cumprir, como a expedição de licenças ambientais, o que deve prorrogar o início (das obras) por mais tempo”. A empresa Cargo Ventores controla a zona livre Miame e “pretende investir na construção da infra-estrutura de carga refrigeradas no porto do Pecém”, território Anacé. Precisa ser dito que os organismos estatais que deveriam proteger o meio ambiente são do mesmo Estado que promove o assalto e saque do território indígena.

Vexames e mortes

Em setembro do ano passado, visitando a aldeia Tapuio, conversei com dona Raimunda Pereira Duarte. Ela me disse na ocasião: “Seu vigário está muito mudado nosso lugar. Cercaram ali e estão cavando buraco e tirando terra. Tem buraco mais fundo que um poste daquele (apontou para um poste da rede elétrica). Só não vou lá mostrar ao senhor porque meu coração não agüenta”. Dona Raimunda morreu de insuficiência cardíaca, cerca de um mês depois, no dia 25 de outubro de 2008. O Estado é o responsável por esta morte. Assim como pelas mortes dos 36 anciões Anacé que foram arrancados de seus territórios, cito alguns: Hipólito Neves, Maria Milagre, Zé Severiano, Emília Atanásio, Chico Freire, Diomar, Nenzinha, Enelson, Raimundo Preto, Totó, Raimunda do Seo Raimundo, Rita da Rocha, Jonas Rafael, Zé Bernaldo, Cloves Balbino, Nestor, Chico Adolfo, Pedro Camilo e Zuza. O Seo Zé Severiano antes de morrer retornava à sua terra e, chorando e gritando, abraçava e beijava seus cajueiros, mangueiras e coqueiros.
Outros Anacé morram por atropelamentos e por suicídios; além de outros vítimas de assassinatos movido pelo tráfico de narcóticos que chegou na localidade junto com o porto do Pecém.
Outrora os Anacé eram perseguidos, muitos assassinados, outros expulsos de seus territórios pelo Estado a tiros e espadas. Hoje o Estado mudou o estilo, mas é o resultado é o mesmo.

O Estado atende interesses dos grandes negociantes

O Estado age desta maneira para atender aos interesses dos grandes mercadores que saqueiam nossas riquezas e batizam estes famigerados atos de desenvolvimento e progresso. Escolhem os locais desconsiderando seus habitantes, oferecem gratuitamente o espaço físico aparelhado de toda a infra-estrutura necessária, feita, claro, às custa do dinheiro público e ainda galhardeia os empreendimentos com isenções de impostos.
Cabe ampliar nossa visão destes atos nefastos do Estado. Não é apenas o povo Anacé atingido nesta ação mercantil. O Brasil inteiro assiste uma nova invasão. O Governo Federal investe em infra-estrutura para receber os novos invasores. Chama este gesto de Programa de Aceleração do Crescimento - PAC. 210 obras do PAC atingem povos indígenas. O Balcão de negociação dar-se, muitas vezes, no exterior. Presidente Lula chegou a dizer na Itália, certa vez, que o único risco para os empresários de investir no Brasil era ter lucro.
O Nordeste brasileiro está sendo palco de um grande negócio. O Ceará parece querer liderar este processo. Recentemente o Governador Cid Gomes esteve na Alemanha e nos Estados Unidos. Esta semana negociantes americanos sobrevoaram o território Anacé olhando onde o Estado reservou para seus empreendimentos.
A lista das obras de infra-estrutura no NE é imensa:
a) Porto do Pecém – para exportação do produtos. Atinge o povo Anacé.
b) Ferrovia Transnordestina que interligará os portos de São Luis (MA), Suape (PE), Pecém (CE) e Ilheus (BA). Esta obra atinge povos indígenas no MA, PE, CE e BA
c) Transposição do rio São Francisco para garantir segurança hídrica. Esta obra atinge 27 povos indígenas
d) Barragens e açudes.
e) Hidrelétricas e termelétricas
f) Gaseodutos
g) Ampliação de aeroporto de passageiros e cargas
h) Duplicação de rodovias
i) Rodovia próxima do oceano atlântico interligando do sul da Bahia (Linha Verde) aos lençóis do Maranhão. No Ceará, cinicamente chamada de estruturante.
Os negócios já instalados ou em vias de instalação, todos voltados para o mercado externo:
a) Siderúrgicas (MA, PE e CE)
b) Refinarias (MA, PE, CE)
c) Indústrias petroquímicas (MA, CE, PE)
d) Indústrias diversas (cata-ventos para energia eólica; ração animal, dentre outras)
e) Fruticulturas, floricultura

Amor e pertença a terra

O povo Anacé organiza-se e articula-se com o Movimento Indígena e aliados para enfrentar os desafios. Na IX Assembléia dos Povos Indígenas do Ceará, Conceição Anacé afirmou: “Cada um que luta pela terra é porque tem amor por ela. Aí eu vou lá. Qualquer coisa que ofende a terra eu vou lá. O reassentamento onde colocaram nosso povo é um crime. Quando se fala em desapropriação a gente vê idosos chorar. Quem tem fé em Deus a esperança pode arriar um pouquinho, mas não desaparecerá. Se somos um povo só, se somos todos parentes, vamos lutar pela terra. Eu nasci aqui, me criei aqui e vou morrer aqui. Só merece a terra quem derramou suor como adubo”. A próxima Assembléia Estadual dos Povos Indígenas do Ceará será no território Anacé.
O povo Anacé, como todos os povos indígenas do Brasil e do Continente, luta para garantir seus direitos territoriais e étnicos e para construir um estado democrático pluri-nacional e multi-étnico.

Alexandre Fonseca

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